In the Rain

terça-feira, 9 de janeiro de 2007

É antigo, tive que lê-o ontem, fiquei com vontade de republicar.

Solidão


Naquela madrugada Marcel acordou chorando, parecia que ia explodir o peito. A mãe levantou calma, deu o seio à criança, que foi aos poucos adormecendo no leito maternal. Depois de pô-lo no berço e olhá-lo dormir saiu tranqüila para seu sono.
O quarto ficou vazio, silencioso, só havia o vento batendo de leve na janela num tom gostoso. O bebê sentiu consumir dentro de si a solidão, chorou, quieto e incessante. Sem ruídos explodiu os pulmões berrando até lhe faltar ar, até não haver mais lágrima. Via fantasmas, tinha medo. Figuras corriam pela noite, e ele sozinho no meio delas.
Passaram-se anos, cresceu numa infância de poucas frases e amigos. Teve brinquedos e festas de aniversário, mas ganhava poucos presentes e muitos convidados. Quando lhe abatia a solidão, quase toda a noite, corria para abraçar a mãe que carinhosa lhe acariciava os cabelos e dizia "já passou", daquele jeito que só as mães sabem fazer. Punha-o na cama e com um sorrir angelical apagava a luz, para que ele dormisse com os anjos. O menino apenas via imagens no escuro, os anjos gargalhavam maléficos enquanto subiam pelas paredes... Ele, sozinho em meio àquilo tudo.
Marcel era do tipo bom em tudo... e não tinha nada. Na escola: ótimo aluno, exemplo de disciplina e educação, desastre em beleza e convivência. Poucos colegas, frases curtas, palavras monossilábicas. Raciocínio baixo, idéias vagas em meio a tanto saber e notas boas; não falava as dúvidas nem expunha o que pensava.
Mesmo quando mais velho, temia andar sozinho à noite, pois a solidão quase eterna com a qual convivia trazia as criaturas que compunham os medos de sua mente e musicavam frases ameaçadoras.
O tempo passou, mudou de escola e de vida. Manteve seu brilho apagado, sua feiura e olhos medrosos. Mas agora havia passado de estranho para tímido e aprendeu a sorrir de verdade também. Tinha, às vezes, pesadelos e solidão, porém aprendeu a se cuidar e a contornar tudo aquilo. Venceu lutas e suas boas notas o permitiram passar na prova mais concorrida do melhor curso do país. Houve festa, 18 anos, tanto talento, um exemplo. Até o pai, eterno viajante, fez questão de prestigiar o filho. Trouxe uma corrente de prata, com um belo pingente onde havia as inicias do filho gravadas. Marcel olhou, sorriu, chutou o abdômen do pai e cuspiu. "Tantos anos de solidão e nem pra ser de ouro". Saiu andando, bateu a porta com força, fazendo um estrondo tão alto quanto o grito louco que sua alma deu. Caminhou sozinho naquela noite, e o vento torturava seus sentidos. Entrou no supermercado, observou seu reflexo no vidro azulado que revestia as portas. Ao ver-se do outro lado do espelho teve vontade de acabar com tudo. Não podia, deu um soco no vidro, que não quebrou mas feriu a mão dele. Em seus olhos residia a fúria, responsável por Marcel não chorar uma vez sequer.
Passou algum tempo, pediu desculpas ao pai, voltou ao normal, nada havia ocorrido. Acordou cedo naquela manhã nova, fez a barba, perfumou-se, deu bom dia à mãe alegre.. Onde vai meu filho tão bonito? A resposta veio com um sorrir gostoso. "Tenho que sair bem na foto, hoje vou mudar o mundo" Naquele dia pôs inclusive a melhor roupa, andou sorrindo em passos calmos. Carregava consigo uma valise nova. Sentou na praça, no centro da cidade. Olhou ao redor, as faces apressadas das pessoas, tanta gente passando e ele ali sozinho. Marcel analisou os gestos de cada um: as caras cansadas, as tristes, os sorrisos falsos, as diferentes vozes, todas elas. Olhou para si e viu no mundo uma série de problemas, viu a transparência em cada forma viu que não era o único infeliz.
Calmamente abriu o paletó, ajeitou-o no corpo. Abriu a valise e apreciou seu brinquedo, uma mini metralhadora, nos quais os tiros voaram para alvos incertos. Recarregou, outra rajada, outra vez - sorria . Os que tentaram detê-lo foram atingidos com mais serenidade.
Seguiu em direção a uma loja, olhou para seu reflexo no espelho, desferiu um golpe forte que machucou a mão. Sentiu os olhares sobre si, revolta, xingamentos. Andou por entre os corpos, aproximou-se de uma mulher que chorava diante do corpo de uma amigo e perguntava por quê ele tinha feito aquilo. Chegou bem perto dela, espancou-a com todo o cuidado até que caísse desacordada. Aproximou-se de seu rosto e respondeu triunfante: "Vim libertá-los da solidão".

1/6/2004

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