In the Rain

segunda-feira, 14 de março de 2005

Dolosemen



- Meus parabéns, vão fazer três meses já. - Ângela olhou apática diante do sorriso já amarelado da médica. As pernas tremiam, o coração disparou desesperado. Esperara dias para abrir aquele exame, teve tanto medo do resultado praticamente certo.
Saiu devagar, caminhou sozinha olhando para o nada, a respiração pela boca. Algumas vezes parava para olhar um espelho, imaginando como estaria sem a roupa justa. Chegou em uma praça, bem em frente à igreja, as mãos pousadas na barriga, os braços flácidos, largados, desespero. Sentada tirou o maço de cigarros da bolsa, acendeu um, fumou devagar porém não tragou, ficou brincando tola com a fumaça na boca. Desatou em soluços, afogou-se num mar de lágrimas.
- Está tudo bem minha filha? - A voz era de um sacerdote que procurou assisti-la em sua tristeza.
- Não é justo... - balbuciou apenas - não é...
Caminhava todas as manhãs atordoada, a mente distante do mundo real. Tomava café sem açúcar, fumava quando tinha vontade, chorava sempre, ria todo o dia. As primeiras semanas passaram devagar, as outras voaram. Comia pouco, passava fome, dormia muito.
- Alô, César? É a Ângela - a voz feminina era natural e baixa, falava devagar.
- O quê? Meu? Mas... - estava nervoso e confuso.
- Eu não vou ter esse filho! - foi dura.
- Ângela, por favor, vamos conversar, pense bem. - Falaram pouco, ela desligou fria depois de dizer o que queria, desde então sumiu.
A barriga foi crescendo, ela tomava comprimido para enjôo, lia sobre gravidez e sobre como ter saúde, fumava seus cigarros. Estava cada vez mais fraca, mais quieta, mais apática. Ficou fria e dura com todos, mudou de casa, desligou o celular, desligou-se do mundo.
- César, aqui é a Ângela. - Ele mudou o tom de voz meio assustado e surpreso, não sabia que palavras escolher.
- E aí? Como você está? - foi apenas o que conseguiu pensar.
- Amanhã César, vai nascer amanhã. - Ele perdeu o tom, o tato, a tonalidade.
- O quê? - Balbuciou com medo - Como assim? Em... em quem hospital?
- Relaxa - ela completou muito amável, enquanto deslizava a mão pela barriga grande. - Vai dar tudo certo, você vai ver.
- Ângela, por favor, me fala pelo menos o hospital... - Ela pôs o telefone devagar no gancho, não sequer teve a curiosidade de saber o que César ainda tinha para dizer. Sentiu sono, caminhou lenta até seu quarto e simplesmente adormeceu.
Vomitou logo pela manhã, mas foi diferente daquela vez, foi mais forte, foi de repente, foi com medo. Pegou o ônibus passando mal, sentia algumas contrações doloridas, mas era um dor diferente, um dor fina que preenchia cada músculo, cada célula. Antes de entrar no hospital ainda acendeu um último cigarro para se acalmar, o vestido largo, os olhos caídos. Largou-o no cinzeiro, jogou-se na maca.
César procurou em todos os hospitais, foi como louco, pesava na consciência a imagem daquele menininho, do seu menino.
- É aqui mesmo senhor, ela deu entrada faz algum tempo já. Você é o que da criança?
- O pai! Eu sou o pai! - A recepcionista assustou-se com os olhos vidrados que o homem tinha.
- Assim que nascer viremos avisa-lo - respondeu assustada. Por enquanto apenas aguarde.
César sentou-se, a imagem das crianças passando, dos bebês chorando, as enfermeiras... entrava em desespero, roía as unhas, mordia o lábio, andava de um lado para o outro.
- Quer me acompanhar senhor. - Pediu gentilmente a enfermeira. Ele balançou a cabeça em resposta e apenas seguiu-a quieto pelo corredor em silêncio. Ela não disse nada, e aquele silêncio fez passar um calafrio por seu corpo.
- Aonde está meu filho? - A enfermeira parou diante de uma área mais reservada.
- Ouça-me, seu filho nasceu com sérios problemas, não poderemos fazer quase nada, ele viverá apenas mais algumas horas.
- Eu quero ver... - foi seco.
Caminharam pesado, ela o fez entrar mostrando a criança. O bebê era raquítico, tinha o rosto completamente desfigurado, manchas vermelhas nas pernas, as mãozinhas tortas, as pernas deformadas, um pequeno monstro. César olhou para o teto, sentiu a dor de seu filho, sentiu o coração paterno dilacerar abriu e fechou as mãos, mordeu o lábio inerte diante daquele pequeno ser humano.
- Aonde está Ângela? - falou baixo.
- Me acompanhe.

A enfermeira deixou-os sozinhos, Ângela olhava a todo instante para baixo não encarava a ninguém.
- Eu falei, deu tudo certo. - as palavras congelaram no ar. César levantou-lhe o queixo com o dedos e olhou-a a fundo.
- Por que você fez isso? O que ele tinha haver com isso? - Ela retornou o olhar fria, puxou o ar devagar.
- Eu não tenho que dar explicações. - Ele enlouqueceu por segundos, pegou-a no pescoço e apartou com raiva. Ângela sentia dor, sentai faltar o ar, mas mesmo assim sorria, sorria sarcástica sem esboçar reação ao sufocamento. As mãos masculinas relaxaram então, antes que alguém pudesse aparecer, ela puxou o ar com força, tossindo ofegante.
- O que foi? Era isso o que você queria também..
- Monstro! Louca, você é louca! César saiu andando nervoso e completamente dissimulado, esqueceu até de virar-lhe um tapa na cara.
Ângela teve alta, deixou que levasse o filho embora. Caminhou no mesmo vestido largo, os sapatos baixos, os olhos magros e amargurados. Andou pelos carros, bem devagar, caminhou olhando para o nada, as mãos segurando a barriga que já tinha murchado, as pernas trêmulas.
Chegou à praça, em frente a igreja. Sentou-se, os braços caíram flácidos e amargurados. Apenas pegou um cigarro do maço, tragou até o filtro, os soluços vieram logo em seguida, desesperados, ela jogou a butuca o mais longe que pode, rasgou os outros cigarros do maço, jogando o pó de fumo sobre a grama. Dos olhos estagnados surgiu um mar de lágrimas.
- Está tudo bem? - perguntou um sacerdote que tentou ajudá-la em sua dor.
- Não é justo... - pode apenas balbuciar... - não é...

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